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junho 14, 2004

Este Mar 



Este mar me detém, mas nunca saberei
quem desvaneceu a escrita aqui abandonada num desígnio antiquíssimo:
as pegadas tenras das gaivotas, folhas tranquilas
a denunciar os ramos adejantes que copiam a espuma

Escrevo gaivotas , simplifico: acaso estes signos
sejam também de alcatrazes, alciões:
mas ao soletrar o seu ditado errante
decifro mensagens num livro tão precário que a brisa o arrebata.
Isso não importaria: eu iria olhando no chão o negativo de meus pés,
nada teria para o comparar, prosseguiria.
Até onde?
Prosseguiria sempre:
jamais findam as praias, nem quando a luz se rende.

Assim, terei de retornar ao poema: nomear o desconhecido,
reconstituir no mineral ou na face que o tempo feriu para delir depois
a pressão de umas pulsações, de uma cabeça vencida pelo cansaço [ou o desejo.
E recomeçar é sangrento se o ímpeto se finca apenas em palavras,
em matéria que não se possui.
As palavras nunca podem guardar-se;
quando poupadas, decompõem-se na sua própria usura.

Há que procurar o texto alado: rente às algas exaustas,
sob a turquesa estilhaçada que neva e tumultua,
iremos desvendá-lo.
Sem um indício?
Uma cor, um odor
vão conduzir-nos: os que no azebre de um rosto em nós sepulto
distanciam as feições do interior de onde despontam,

como o verbo se corrompe desde que as sílabas se juntam e ameaçam:
os sinais que gravamos propõem uma totalidade
até que uns olhos neles se jogam e os afastam
do sangue de onde nascem.
Esse é o exemplo das asas:
lassas, arqueiam-se suplicando o sol,
rasam a areia, prolongam a nervura das pegadas,
enfunam-se num arrepio inverniço - prenúncio de rajadas e marés -
e disparam para incendiar-se onde a sombra as não humilhe.
Recomeço, pois. Como recuperar o início?
os cirros como lanhos veementes a exaurir as tardes?
os areais rebeldes aos barcos, a expulsar o seu domínio?
Onde os dias a transbordar de conchas cálidas?

Estou aqui e é evidente que a ausência de sinais
sobre este chão, estas mãos, esta fronte que não sustenho
porque estão em outro lugar numa hora longínqua
é a única legenda que me pode ser dada.

Só resta transcrevê-la e extingui-la sem a ter compreendido.
Pousam estas letras como aves: desconhecem a morte,
para elas todo o espaço é este azul e o tempo o momento
em que seu vulto avança e é peso a impor um sentido
que será denunciado apenas a quem a seguir até à própria consumação:
a salsugem, o vento ávido de cumprir-se na sua fuga ao silêncio,
as vagas ou o esquecimento indiferentes ao destruir o que ignoram,
mesmo se a espuma é no meio-dia um peito em floração
e na noite a alva naufragada prestes a cobrir o corpo desejado.

Poema de José Bento
Fotografia de Carlos Serrano

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