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junho 30, 2004

Senhor Europa 

Com a Europa do futebol em casa, o anúncio do convite feito a Durão Barroso para assumir o tão delicado cargo de presidente da Comissão Europeia introduz nas nossas relações com a nova Europa uma nota de proximidade e de familiaridade "europeístas" de que o nosso país bem precisava para sair da sua conhecida morosidade nessa matéria. De um dia para o outro vai ser "chique" ser europeu agora que o rosto da Europa é a cara decidida e ainda juvenil do nosso primeiro-ministro. Talvez se perceba, enfim, até que ponto a nossa distracção europeísta, o nosso desencanto em relação à Europa que as últimas eleições confirmaram, eram mais amuo ou ressentimento em relação ao centro que não nos via tanto como nós gostamos de ser vistos do que distância e indiferença assumidas e, sobretudo, justificadas. Para europeístas militantes a conversão não surpreenderá. Há muito que quem não anda neste mundo apenas por ver andar os outros sabe que o nosso destino, que outrora se jogou no mundo por conta da Europa, se joga agora na Europa por conta do mundo.

O acesso de um português a Senhor Europa, além de facto político importante que é, no âmbito europeu, é um facto ainda mais importante no plano nacional, se é que se podem separar. Nenhum outro se lhe pode comparar desde o 25 de Abril, salvo o da nossa adesão à Comunidade Europeia, em boa hora promovida pelo então Presidente Mário Soares. Só que, entretanto, o contexto europeu e internacional mudou e esta nossa implicação ao mais alto nível na construção de uma Europa em crise não tem para nós menos alcance que o dessa adesão feita ainda por cálculo político e num clima de esperança.

Que Portugal trás Durão Barroso a esta Europa que recebe ordens dos Estados Unidos como se fosse a Grécia do tempo de Cícero? Em alguma imprensa europeia, que em geral tem recebido a candidatura de Durão Barroso com aplauso, o nosso actual primeiro-ministro é apresentado, uma vez como o melhor amigo de Blair outra como filoamericano, o que é e não é a mesma coisa. O filoamericanismo de Durão Barroso (o homem da cimeira dos Açores) não é na actual circunstância um "handicap", mesmo na perspectiva da esquerda. O filoamericanismo não é obrigatoriamente um alinhamento acrítico pela actual política da administração Bush. Quem faz política a médio prazo, na Europa, não se pode dar ao luxo de ser, por conta de antagonismos passados, antiamericano por princípio. Mais decisiva é ou será a opção especificamente europeia do nosso antigo ministro dos Negócios Estrangeiros e futuro presidente da Europa. Nesse sentido, a sua real ou suposta opção "blairista" importa mais que o seu alinhamento táctico com a política imperialista de Bush. Paradoxalmente, este seu novo cargo - de escolha pessoal e de incidência nacional - impõe-lhe deveres de "neutralismo" virtual em matéria de escolha europeia. É aí que a experiência de diplomata e o seu instinto o servirão. Não custa imaginar que a natureza do novo espaço político onde vai ser obrigado a agir, a espécie de liberdade que através dele alcançará, não tenham sido factores determinantes para ter aceitado a sua alta missão. Terá de fazer esquecer que, em circunstâncias graves para o destino europeu, integrou uma das "europas" em litígio e que não foi a "velha" de baptismo "rumsfeldiano", quer dizer precisamente aquela que tão penosamente há uns bons quarenta anos tenta construir a única Europa. Essa mesma Europa que agora vai representar oficialmente e que terá de defender de todos os cavalos de Tróia que não desistiram de enterrar.

Guardado estava o bocado para quem o havia de comer. A saída por cima pela Europa, como toda a gente se lembra, era o sonho de António Guterres. Só ele saberá por que e a que preço renunciou a um destino europeu que lhe estava destinado. Nisto, como no resto, Durão Barroso é o seu sucessor miraculoso. Este último talvez tenha tido, como político responsável que é, escrúpulos análogos aos de António Guterres, mas as circunstâncias políticas de um e outro eram diferentes. O partido de Guterres não podia deixar partir o seu patrão. Guterres não tinha motivos imperativos para o abandonar. Nessa altura, pelo menos. Durão Barroso, mesmo sem as desastrosas eleições europeias, tinha muitos para se ver livre de uma coligação política e, sobretudo, ideologicamente contranatura. Essa coligação era uma duvidosa noiva. A Europa vale bem uma missa e esta é pontifical. E o país?

Provavelmente, e segundo o nosso reflexo clássico, a pátria política - ou a política nela - estará mais interessada pela inédita e insólita situação criada pelo abandono da cadeira de São Bento que pela ascensão ao Olimpo europeu por Durão Barroso interposto. Se não fosse o futebol, a esta hora, a cara classe política estaria vivendo uma efervescência digna de Verão quente ou pelo menos morno, depois de dois anos de marasmo dividido a meias entre maioria e oposição. E talvez já o esteja. Formalmente, não há razões para isso, mas psicologicamente, não faltam. A saída de Durão Barroso (política), por mais patrióticos que sejam os seus motivos, tinha de suscitar, mais que não fosse pela analogia espanhola, uma vontade de preencher o vazio objectivo do poder tornado palpável pela ausência de quem o encarnava. Uma solução meramente mecânica da questão não estará à altura do acontecimento. E ninguém o saberá melhor que o Presidente da República, garante do nosso equilíbrio político, que nunca é meramente formal. Há momentos em que se pode dar tempo ao tempo, outros são de urgência e do risco que ela implica. É a primeira vez que Jorge Sampaio se encontra numa situação em que nenhuma fórmula e nenhum conselho lhe podem indicar o caminho certo. Talvez seja esse o preço a pagar para sermos "alguém" na Europa. Seria extraordinário que tendo chegado lá e ocupando o seu ponto mais alto para ajudar a fazê-la, tivéssemos em casa, para levar a cabo essa tarefa, um Governo tão híbrido, no qual algumas das estrelas são há muito, de profissão e tradição, sólidos pilares do antieuropeísmo. Velho e novo. Possa a nova situação esclarecer o que é menos um enigma que uma aberração.


Texto de Eduardo Lourenço no Público.

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