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maio 22, 2005

Anniversario 


Em flagrante delitro


No tempo em que festejavam o dia dos meus annos,
Eu era feliz e ninguem estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer annos era uma tradição de ha séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa como uma religião qualquer.

No tempo em que festejavam o dia dos meus annos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a familia,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.

Sim, o que fui de supposto a mim-mesmo,
O que fui de coração e parentesco,
O que fui de serões de meia-provincia,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui – ai meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que distancia!...
(Nem o acho...)
O tempo em que festejavam o dia dos meus annos!

O que eu sou hoje é como a humidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme atravez das minhas
lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um phosphoro frio...

No tempo em que festejavam o dia dos meus annos...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo physico da alma de se encontrar alli outra vez,
Por uma viagem metaphysica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!

Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que ha aqui...
A mesa posta com mais logares, com melhores desenhos na louça, com
mais copos,
O aparador com muitas coisas – doces, fructas, o resto na sombra
debaixo do alçado –,
As tias velhas, os primos differentes, e tudo era por minha causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus annos...

Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço annos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o fôr.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!...

O tempo em que festejavam o dia dos meus annos!...


Álvaro de Campos


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