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janeiro 30, 2006

Um Reino Maravilhoso 

A memória nostálgica e distante da terra mítica de onde se abrange o resto de Portugal, neste Conto de Miguel Torga-1941, com as ilustrações antropomorfizadas de Graça Morais, de quem poderemos ver até início de Abril a Exposição "Os Olhos Azuis do Mar".
Espero que todos os estrangeiros que amam estes dois portugueses maiores, tenham curiosidade e paciência para o disfrutar!



Vou falar-lhes dum reino maravilhoso.

Embora muitas pessoas digam que não, sempre houve e haverá reinos maravilhosos neste mundo.
O que é preciso, para os ver, é que os olhos não percam a virgindade original diante da realidade e o coração,depois, não hesite.
Ora, o que pretendo mostrar, meu e de todos os que queiram merecê-lo, não só existe como é dos mais belos que se possam imaginar.
Começa logo porque fica no cimo de Portugal, como os ninhos ficam no cimo das árvores para que a distância os torne mais impossíveis e apetecidos. E quem namora ninhos cá de baixo, se realmente é rapaz e não tem medo das alturas, depois de trepara e atingir a crista do sonho, contempla a própria bem-aventurança.




Vê-se primeiro um mar de pedras.
Vagas e vagas sideradas, hirtas e hostis, contidas na força desmedida pela mão inexorável dum Deus criador e dominador.
Tudo parado e mudo. Apenas se move e se faz ouvir o coração no peito, inquieto, a anunciar o começo de uma grande hora.
De repente, rasga a espessura do silêncio uma voz de franqueza desembainhada:
- Para cá do Marão, mandam os que cá estão!...

Sente-se um calafrio. A vista alarga-se de ânsia e de assombro.
Que penedo falou?
Que terror respeitoso se apodera de nós?
Mas de nada vale interrogar o grande oceano megalítico, porque o nume invisível ordena:
- Entre!





A gente entra, e já está no Reino Maravilhoso.
Reino, nestes livros sinistros que são os dicionários, é um substantivo masculino com rei à frente. Imaginem!... Como se fossem suficientes um léxico e um monarca para definir e governar uma realidade irreal!
Pelo que diz respeito a mandar, é o que sabemos:
- Para cá do Marão... Mandam todos.
O poder que atravessa a muralha e penetra ali, se tem corpo, se tem nome, ou perde a marca individual e se transforma em símbolo, ou morre. Tem de ser sempre, quer seja Pio X ou Pio XII, o «nosso Santo Papa Leão XIII», que é quem a Maria Purificada elege em cada conclave na sua Vila de Freixo de Espada à Cinta...
Incapazes de uma obediência imposta de fora, os habitantes da terra apenas consideram naturais e legítimos os imperativos da própria consciência.





O eco duma ordem estranha à sua harmonia interior desliza pela crosta das almas sem as perturbar. As mais altas dignidades de além-fronteiras nada mais representam do que puras expressões nominais de valores abstractos.
Meta-se um cristão por qualquer dos caminhos que levam ao coração geográfico desse mundo encantado. De certeza que lhe aparece um semelhante de aguilhada na mão, socos pregados e roupa de saragoça, a perguntar:
- Ó meu senhor, sempre é verdade que o nosso rei agora é o Doutor Afonso Costa?
Faça o que fizer o Tamerlão invasor, a mesma vontade que ele julga dobrar o desroíza e vence. É ela que, a bem ou a mal, acaba por dispor das riquezas que lhe pertencem: das águas de regadio, dos baldios, da mulher e dos filhos, de si. De tudo o que na vida material e espiritual tem grandeza e sentido. No pormenor, no que não é seiva de ninguém, dão sentenças o Regedor e o Senhor Abade, que, afinal, pregam editais nas portas e sermões nas igrejas...





A autoridade emana da força interior que cada qual traz do berço. Dum berço que oficialmente vai de Vila Real a Montalegre, de Vinhais a Bragança, de Bragança a Miranda, de Miranda a Freixo, de Freixo à Barca de Alva, da Barca à Régua e da Régua novamente a Vila Real, mas a que pertencem Foz Côa, Meda, Moimenta e Lamego - toda a vertente esquerda do Doiro até aos contrafortes do Montemuro, carne administrativamente enxertada num corpo alheio, que através do Côa, do Távora, do Torto, do Varosa e do Balsemão desagua na grande veia cava materna as lágrimas do exílio.
Um mundo! Um nunca acabar de terra grossa, fragosa, bravia, que tanto se levanta a pino num ímpeto de subir ao céu, como se afunda nuns abismos de angústia, não se sabe por que telúrica contrição.





Terra-Quente e Terra-Fria. Léguas e léguas de chão raivoso, contorcido, queimado por um sol de fogo ou por um frio de neve. Serras sobrepostas a serras. Montanhas paralelas a montanhas. Nos intervalos, apertados entre os lapedos, rios de água cristalina, cantantes, a matar a sede de tanta aridez. E de quando em quando, oásis da inquietação que fez tais rugas geológicas, um vale imenso, dum húmus puro, onde a vista descansa da agressão das penedias.





Veigas que alegram Chaves, Vila Pouca, Vilariça, Mirandela, Bragança e Vinhais.
Mas novamente o granito protesta. Novamente nos acorda para a força medular de tudo. E são outra vez serras, até perder de vista.
Não se vê por que maneira este solo é capaz de dar pão e vinho. Mas dá. Pão de milho, de centeio, de cevada e de trigo. Pão integral. Por ser pão e por ser amassado com o suor do rosto. Sabe a trabalho. Mas é por isso que os naturais o beijam quando ele cai no chão...
O vinho é de moscatel, alvarelhão, penaguiota, malvasia fina, e mana das fragas à ordem de vozes imperiosas como a de Moisés quando feria a pedra do Horeb - a vara mágica patriarca substituída agora por um alvião de saibramento. Por toda a parte apetece saboreá-lo, porque mesmo onde a neve, o sincelo e o suão crestam a esperança, mesmo aí ele parece veludo no paladar. Mas há lugares santos onde a santidade é maior. Assim acontece no Roncão, Samos de todos os Samos.
Nas margens de um rio de oiro, cruxificado ente o calor que de cima o bebe e a sede do leito que debaixo o seca, erguem-se os muros do milagre. Em íngremes socalcos, varandins que nenhum palácio aveza, crescem as cepas como os manjericos às janelas. No Setembro, os homens descem as eiras da Terra-Fria e descem, em rogas, a escadaria do lagar de xisto. Cantam, dançam e trabalham. Depois sobem. E daí a pouco há sol engarrafado a embebedar os quatro cantos do mundo.





Mas a terra é a própria generosidade ao natural. Como num paraíso, basta estender a mão. Produz batata, azeite, cortiça e linho. Batata farinhuda, que se desfaz na boca; azeite loiro, que sai em luz da almotolia; cortiça que deixa os sobreiros nus para agasalhar os enxames; e linho fresco, fino, que, tecido em lençois, faz o bragal das noivas.
De figos, nozes, amêndoas, maçãs, peras, cerejas e laranjas nem vale a pena falar. São mimos dum pomar variegado, que nenhuma imaginação descreve quando a Primavera estala nos ramos.
Ver uma encosta de Barca de Alva coberta de flores de amendoeira, ou o Solar de Mateus a emergir dum mar de corolas sortidas, é contemplar o inefável. Mas o fruto dos frutos, o único que ao mesmo tempo alimenta e simboliza, cai dumas árvores altas, imensas, centenárias, que, puras como vestais, parecem encarnar a virgindade da própria paisagem. Só em Novembro as agita uma inquietação funda, dolorosa, que as faz lançar ao chão lágrimas que são ouriços. Abrindo-as, essas lágrimas eriçadas de espinhos deixam ver numa cama fofa a maravilha singular de que falo, tão desafectada que até no próprio nome é doce e modesta - a castanha.
Assada, no S. Martinho, serve de lastro à prova do vinho novo. Cozida, no Janeiro glacial, aquece as mãos e a boca de pobres e ricos. Crua, engorda os porcos, com a vossa licença...





É destes que se tem de partir para chegar à trindade tradicional do reino: os presuntos, as alheiras e os salpicões.
Por alturas do Natal, começa a matança. Ao romper da manhã, a paz de cada povoado é subitamente alarmada. Um grito esfaqueado irrompe do silêncio. Dias depois desmancha-se a bisarma, e um pálio de fumeiro cobre a lareira.
Quem não comeu ainda desses manjares ensacados, prove... E há-de encontrar neles o sabor das invernadas passadas ao borralho enquanto a neve cai, o perfume das graças dadas por alma daqueles que Deus tem, a magia da história de João de Calais contada aos filhos, e uma ciência infusa de temperar, que vem desde que a primeira nau chegou à Índia.
Mas o panorama zoológico não se fica pelo animal de vista baixa que se desfaz em torresmos e chouriços. Passando pelo lobo do Eusébio Macário, que só por si vale um tigre do Kipling, pelo boi de Miranda, que só lhe falta falar, e pelo bicho-da-seda que de Bragança aveludou em tempos Ceca e Meca, temos ainda a perdiz, a fera da Mantelinha, que nenhum forasteiro deve deixar de ver.





Em Outubro, quando o sol ainda a espreguiçar-se de sono lava a cara na fonte de Casal de Loivos, certo perdigueiro, que sobe o monte colado ao chão, já com um aceno perfumado a fazer-lhe cócegas no nariz, pára de repente siderado. Manda-se-lhe dar a pancada. O navarro entra, e só então Sua Senhoria aparece.
Cabeça alta de quem olha o mundo de cima, peito largo aberto ao vento, pés seguros de almocreve.
- Pfrrruuu...u...u. Lá vai ela!
Quando o tiro lhe acerta e cai, parece uma deusa morta...
No cinto, ainda se lhe tem respeito...

A truta, que representa com dignidade e bravura o mundo da barbatana, é nos açudes que mostra o que é. Sobe por eles acima como os rapazes pelos mastros ensebados, e só com sofismas a pescam uns filósofos sem filosofia, que vale a pena observar, de cana em riste e saltão no anzol.
Quem for a Boticas, coma um peixinho e beba-lhe «vinho de mortos» em cima. Pelo que houver, fico. Acudo-lhe com o único remédio decente que se conhece para moela fraca - um quarto de Pedras ou Vidago, águas minerais que nascem perto.
A terra é de tal natureza que, não contente com as dádivas a céu aberto, encerra nas entranhas riquezas que não têm conto. Entra-se no ventre duma serra, e é ferro, é oiro, é chumbo, é estanho, é volfrâmio, é zinco, é urânio, é tudo quanto Vulcano forjou. Caldas, então, é um benza-te Deus. São famosas as de Carrelão, as de Moledo, as de Alfaião, as de Chaves, as de Carvalhelhos e as de Sabroso - porque todas elas fazem milagres perfeitos.
E vêm então peregrinos de muito longe - gente que arrebentou ou se envenenou a comer um boi e a beber um tonel - curar nelas o estômago, o fígado, a gota, os eczemas e a melancolia. Tomam-nas durante quinze dias. Ao cabo, regressam, de corpo e alma nova.





Os naturais é que raramente precisam delas, por serem homens de muita saúde e sobriedade.
Homens de uma só peça, inteiriços, altos e espadaúdos, que olham de frente e têm no rosto as mesmas rugas do chão. Castiços nos usos e costumes, cobrem-se com varinos, croças, capuchas e mais roupas de serrobeco ou de colmo, e nas grandes ocasiões ostentam uma capa de honras, que nenhum rei! Usam todos bigode e alguns suíças.
E põem uma dignidade tal, um sentido tão profundo da pessoa humana, que é de a gente se maravilhar.





Às vezes agridem-se uns aos outros com tamanha violência que parecem feras. Mas olhados de perto esses nefandos crimes, vê-se que os motiva apenas uma exacerbação de puras e cristalinas virtudes, que só não são teologias porque Deus não quer.
Fiéis à palavra dada, amigos do seu amigo, valentes e leais, é movidos por altos sentimentos que matam ou morrem.
Ufanos da alma que herdaram, querem-na sempre lavada, nem que seja com sangue. A lendária franqueza que vem nos livros, é deles, realmente. Mas radica na mesma força interior que, levada à cegueira da exaltação, pode chegar ao assassínio. Bata-se a uma porta, rica ou pobre, e sempre a mesma voz confiada nos responde:
- Entre quem é!





Sem ninguém perguntar mais nada, sem ninguém vir à janela espreitar, escancara-se a intimidade duma família inteira. O que é preciso agora é merecer a magnificência da dádiva. Nos códigos e no catecismo o pecado de orgulho é dos piores. Talvez que os códigos e o catecismo tenham razão. Resta saber se haverá coisa mais bela nesta vida do que o puro dom de se olhar um estranho como se ele fosse um irmão bem-vindo, embora o preço da desilusão seja às vezes uma facada.
Dentro ou fora do seu dólmen (mania que eu tenho de chamar aos buracos onde vive a maioria) estes homens não têm medo senão da pequenez. Medo de ficarem aquém do estalão por onde, desde que o mundo é mundo, se mede à hora da morte o tamanho de uma criatura.





Acossados pela necessidade e pelo amor da aventura, aos vinte anos (se não tiver sido antes), depois da militança, alguns emigram para as Arábias de além-mar. Brasis, Áfricas e Oceanias. Metem toda a quimera numa saca de retalhos, e lá vão eles. Mourejam como leões, fundam centros de solidariedade humana por toda a parte, deixam um rasto luminoso por onde passam, e voltam mais tarde, aos sessenta, de corrente ao peito, cachucho no dedo, e com a mesma quimera numa mala de couro.
Gastam cem contos numa pedreira a fazer uma horta, controem um casarão com duas águias no telhado, e respondem com um ar manhosos a quem lhes censura um amor tão desvairado às berças:
- Infeliz pássaro que nasce em ruim ninho...
E continuam a comer talhadas de presunto cru.
Os que ficam, cavam a vida inteira. E, quando se cansam, deitam-se no caixão com a serenidade de quem chega honradamente ao fim dum longo e trabalhoso dia. E ali ficam nuns cemitérios de lívida desilusão, à espera que a lei da terra os transforme em ciprestes e granito.





Alegrias gratuitas têm poucas. Embebedam-se nas festas e nas feiras, batem a cana-verde nos dias grandes, e gozam os robertos e as vistas que levam de povo em povo um sofisma de ventriloquia e a irrealidade serôdia das terras do Preste João.

- Ó Zé Roberto:
Queres casar comigo, que sou uma rapariga bem boa?
Bem boa! Bem boa! Bem boa!
- Olha o «Vatícano», olha o «Vatícano», com as suas 365 janelas e o Papa a olhar a uma delas... Quem quer ver?





Nas romarias, verdadeiramente, não se divertem. Pagam nelas o dízimo espiritual ao santo ou à santa com quem têm contratos pelo ano fora, e fazem a barrela das suas relações humanas.
A capela da devoção fica no alto do mais alto monte que rodeia a freguesia. E eles sobem então pela serra acima, quer à vara do pálio, quer a alombar o andor, quer de joelhos, a abrir uma chaga de sofrimento no corpo pecador - mas sem tirar os olhos do inimigo com quem hão-de medir forças no arraial. Ao descer, vêm numa manta, esfaqueados.
Dessas mortes ficam pelos caminhos memórias de pedra com alminhas do purgatório a pedir orações, que são a História íntima do reino resumida em padre-nossos. A outra, toda feita de lendas e fantasia, tem o seu tombo no coração dos que são poetas, e conta-se nas fiadas.
Na loja dos bois, ao calor aconchegado da bosta quente a fermentar a palha, envolto na luz pacífica de uma candeia de azeite, o rapsodo mais velho começa:

- No tempo da Princesa Clarimunda...





À meia-noite o fuso pára nas mãos adormecidas das fiandeiras. Erguem-se todos.
Mas no dia seguinte chega-se ao fim. De Celtas, Iberos, Romanos, Moiros, etc. e tal, e dos do tempo dos afonsinos, os velhos dão pouca relação. Em todo o caso mostram os dólmenes do Alvão, a Porca de Murça, a ara do deus Aerno, os castros defeitos, os altares de Panóias, a ponte romana de Chaves e a Domus Municipalis de Bragança.
O tempo mudou os símbolos da fé, deliu as inscrições sagradas, e relegou para a penumbra da arqueologia o que foi vivo e útil. Por isso, olham todas essas relíquias numa espécie de melancolia esquiva. Renúncia incorformada, que, num desesperado esforço, de encontrar os secretos tesoiros da unidade eterna, às vezes os leva a meter um cartucho de dinamite nas pedras veneráveis, a ver se elas resistem à inquitação do presente.





É certo que há escolas pelo país a cabo onde as leis inexoráveis do perecível e do imperecível são explicadas. De uma sei eu em que certa palmatória de cinco olhos faz decorar tudo quanto no mundo se descobriu até à raiz quadrada.
Mas mesmo nos reinos maravilhosos acontece a desgraça de o povo saber duma maneira e as escolas saberem doutra. Acabado o exame da quarta classe, cada qual trata de sepultar sob uma leiva, o mais depressa que pode, a ciência que aprendeu.
A não ser o Senhor Varatojo, que dá sota e ás ao mais pintado doutor. Na inquebrantável decisão de levar tudo ao fim, na teimosia que, uma vez segura da sua verdade, não cede a nenhum argumento, e no gosto inquieto de conhecer, podia ter sido um novo Fernão de Magalhães, a dar a volta aos mundos de agora.
Mas como a pátria não convida os filhos para tais empresas, empregou-se na câmara, come do bom e do melhor, à custa de quem lho vai meter no bico, toca bandolim, e lê quantos romances se escreveram. Depois conta-os na farmácia, e pinta o diabo se alguém o desmente.





- Tenho a certeza matemática! - Grita congestionado.
E tem, porque sabe de cor as vírgulas e as peripécias. Outro dia chegou mesmo a ir a Paris, só para ver num parque público o banco onde uma heroína qualquer deu um beijo ao namorado. Entra esbaforido na estação da Vila, pede um bilhete, e aí vai ele. Chegou lá, não quis saber de mais nada:
- Faça favor: onde é o Bosque de Bolonha?
Olhavam-no todos como quem olha um fenómeno, mas sempre lhe disseram. Parecia um tiro pelas ruas a cabo.
Ao fim duma hora de caminho, chegou ao sítio. Examinou, calculou, andou, virou, tornou, até que deixou sair do peito um arranco de triunfo:
- Foi neste!
- Neste, o quê?!
Então ele explicou. Assombrados e cépticos, os de lá puseram-se a rir.





Felizmente que o romance estava escrito em francês...
E como alguém duvidasse, já não do juízo do homem, mas de tudo se ter passado mesmo, mesmo naquele banco, o Senhor Varatojo mostrou a página do livro, tirou do bolso do colete o relógio, e provou:
- A cena passa-se no dia 24 de Agosto, às quatro horas. Ora bem: estamos a 24 de Agosto e são quatro horas em ponto. O banco onde os dois se sentaram tinha sombra. não há mais nenhum com sombra. Portanto...
Meteu-se outra vez no comboio, cabeçudo, e retomou as suas funções, sentado à secretária, sempre com as virtudes do povo na ponta da língua, a garantir que Camilo é o cronista do Reino, e a confessar que vai todas as noites ao jardim da Carreira ouvi-lo sobre política, religião e literatura. Ainda não encontrou fonte onde bebesse com tanto gosto...





Os contribuintes pagam a décima e riem-se. Que diz o Senhor Varatojo?! O Camilo! O Camilo levou mas foi uma grande coça na Senhora da Azinheira, outra na Senhora da Saúde, outra na Senhora dos Remédios... Fazia-se fino!...
Engole em seco e muda de conversa. Como é também da mesma laia, capaz de cobiçar a mulher do próximo e varrer uma feira a estadulho, não insiste. Sabe muito bem que vive entre irmãos que não mudam de camisa para esbofetear o mais pintado, seja ele o autor do Amor de Perdição, mas que também lhe tiram o chapéu, caso o mereça.
Fracos em letra redonda, sabem todos honrar a grandeza verdadeira. E a prova é que o lá têm, a esse trágico inventor de tragédias, entronizado no coração das fragas, a receber o carinho eterno da terra onde foi menino e génio. Bateram-lhe realmente nas romarias, mas deram-lhe o maior bem que se pode ter:
O nome de Transmontano, que quer dizer filho de Trás-os-Montes, pois assim se chama o Reino Maravilhoso de que vos falei.

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